Apresentação

O ano era 1919, meses após o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), no auge da República Velha (1889-1930), período marcado pelo domínio do poder das oligarquias rurais conservadoras no cenário político e econômico brasileiro. Uma época de controle político exercido sobre o governo federal, pela elite rural mineira e pela oligarquia cafeeira paulista.

Um concurso diferente mobilizou a cidade de Petrópolis (RJ), também conhecida como Cidade Imperial, município localizado no interior do Rio de Janeiro, na Região Serrana Fluminense: “rapazes elegantes e efeminados” se reuniram para definir quem era o melhor na arte de bordar e pintar almofadas trazidas da Europa, especialmente, para a ocasião. Assim definiu o escritor Raimundo Magalhães Jr., conhecedor das modas daqueles tempos, biógrafo de João do Rio e pai da carnavalesca Rosa Magalhães, ao contar como teria surgido o termo “almofadinha”, usado para designar na época “tipos afetados, cheios de salamaleques e não‐me‐toques”.

O resultado do incomum concurso não foi aceito por alguns dos rapazes perdedores, o que gerou desentendimentos e protestos. O escritor Lima Barreto, em uma de suas crônicas, comentou: “Foi à custa do esforço e abnegação dos pais que esses petroniozinhos de agora obtiveram ócio para bordar vagabundamente almofadinhas em Petrópolis, ao lado de meninas deliquescentes".

Como vemos, muita coisa não mudou de 1919 para os nossos dias e, mais do que nunca, hoje, tempos estranhos onde a perseguição e censura aos comportamentos tidos como desviantes de um certo padrão conservador – aquele que cumpre com os estereótipos impostos por uma sociedade antiga, da “moral e bons costumes” – avança em marcha assustadora. Para muitos ainda parece estranho, ou mesmo emasculante, quando homens se dedicam a atividades normalmente percebidas pela maioria como “coisa de mulher”: bordar lenços, paninhos de mesa e almofadas, pintar pratos de porcelana, construir objetos delicados com flores e borboletas; homens que, em seus trabalhos artísticos discutem questões de afeto, memória e sexualidade; apontam possíveis fragilidades ocultas por trás da máscara do homem viril bruto; questionam a noção geral de que força e delicadeza, virilidade e poesia, masculinidade e vulnerabilidade, são qualidades humanas impossíveis de existir lado a lado.

Em nossos dias, homens que bordam, certamente, não são mais novidade no meio artístico. Bispo do Rosário e Leonilson produziram uma imensa obra baseada em, entre outros meios, bordados. Porém, fora deste meio, ainda vemos de narizes torcidos e até reações mais violentas ao fato de que há homens que bordam, ou que tem como base de seus trabalhos, atividades entendidas como “femininas”, o que para uma boa parcela da população brasileira estaria “errado”.

Do encontro de três artistas homens que se dedicam em seus trabalhos, por razões distintas, mas que se entrecruzam, ao território do sensível e do delicado, entremeado por questões de afeto e sexualidade, e que tem o bordado como um dos meios de produção de suas obras (mesmo que não exclusivamente), nasceu o grupo “Almofadinhas”, formado por Fábio Carvalho (RJ), Rick Rodrigues (ES) e Rodrigo Mogiz (MG).

Tudo começou em meados de 2015, quando os três artistas começaram a realizar conversas à distância, por meio das redes sociais, sobre as afinidades conceituais e imagéticas de suas obras e como poderiam fazer algo coletivamente.

Em pouco tempo, adotaram o termo Almofadinhas para denominar o grupo e o primeiro projeto de exposição que começaram a desenvolver, o qual reuniu produções dos três artistas. Projeto este desenvolvido de forma a apresentar os trabalhos da maneira mais interligada possível, privilegiando-se as temáticas e similaridades entre as obras: a expografia adotada pelo coletivo, tinha como objetivo provocar um entrelaçamento das séries. O critério seguido para apresentação foi, principalmente, os temas abordados pelos artistas que se encontram não apenas pela linguagem (linhas, agulhas e tecidos), mas também pelos signos representados.

A exposição Almofadinhas teve sua estreia em Belo Horizonte, cidade de Rodrigo Mogiz, em fevereiro de 2017, na Galeria GTO do SESC Palladium. Pretende-se agora promover a circulação do projeto por toda a região Sudeste, uma vez que cada artista nasceu, vive e trabalha em um estado desta região.

Almofadinhas, além de um grupo de artistas e um projeto de exposição itinerante, ao trazer o bordado masculino mais uma vez para o campo da Arte Contemporânea, promove espontaneamente por onde passa um debate que acaba por provocar a tradição ocidental patriarcal, arraigada à ideia de que esta é uma atividade artesanal do campo feminino, doméstico e de importância inferior, ampliando as discussões sobre questões de gênero, afetividade, memórias e sexualidade.


Bibliografia

MELO, Alexandre Vieira da S. Melindrosas e almofadinhas: O masculino e o feminino por meios das charges nas revistas ilustradas (Recife, década de 1920), IN: Anais do 18º REDOR, Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2014. 

MIGÃO, Pedro. Histórias Brasileiras – “Almofadinha – a Origem”, IN: Ouro de Tolo, 06/05/2013. 

PINTO, Tales. República Velha (1889‐1930), IN: Brasil Escola, sem data. Disponível em:
brasilescola.uol.com.br/historiab/republica‐velha‐1889‐1930.htm, acessado em: 12/07/2016